O texto “Tradição e talento individual” de T.S. Eliot (1989) se inscreve no chamado New Criticism americano, corrente crítica que buscava virar o foco da anedota e a biografia do autor da obra literária para as questões formais da mesma. Neste texto, Eliot propõe, em primeiro lugar, uma reconceituação dos termos crítica e tradição, que ele considera mal utilizados pela crítica da poesia então. Em segundo lugar, o autor desenvolve uma “teoria impessoal da poesia”, problematizando a relação entre o texto e as intenções autorais. A seguir nos referiremos a cada ponto da teoria do Eliot.
O termo tradição na crítica da poesia do contexto de Eliot era raramente empregado. O adjetivo de “tradicional”, no que respeita à avaliação da produção de um poeta, tinha uma conotação frequentemente negativa, entanto implicava uma falta de individualidade com respeito às obras do passado, cujos parâmetros o autor estaria seguindo sem apresentar nenhuma originalidade. De fato, ao momento de elogiar um poeta, se focalizava nos traços em que ele menos se assemelha com os outros, e neles se procurava achar a sua essência. A palavra só cobra uma significação “vagamente aprobatória” no caso de um estudo histórico das obras literárias reconhecidas em termos de “reconstrução arqueológica”.
Confrontando estes supostos, Eliot afirma que se nos aproximamos à obra do poeta sem procurar nele só a sua individualidade descobriremos que “não apenas o melhor mas também as passagens mais individuais da sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade” (ELIOT, 1989:38). Longe de se tratar de uma adesão “cega” ao trabalho da geração anterior, o conceito de tradição que propõe Eliot envolve um sentido histórico que implica a percepção da presença do passado no presente. A obra de um poeta não tem um valor absoluto em si, a apreciação que temos dela se constrói na relação que ela mantém com as obras precedentes. Eliot entende esta relação como uma “ordem ideal”: As obras de arte consagradas constituem uma totalidade completa. Ao surgir uma obra de arte nova, as relações que as obras mantêm entre si, entanto valores e sentidos, são reajustadas para lograr incorporar a novidade e consolidar novamente a harmonia. Se a obra nova estiver apenas em harmonia com as precedentes e não causar um reajuste na ordem, não seria uma obra nova.
Estabelecido assim o conceito de tradição atendendo às relações entre a obra de arte nova e as obras do passado junto às quais constitui uma ordem, Eliot explica a necessidade da crítica: “Num sentido peculiar, terá ele [o poeta] também a consciência de que deve inevitavelmente ser julgado pelos padrões do passado” (idem: 40). Tal crítica não se trata de julgar se a obra for melhor ou pior do que as precedentes, mas de uma comparação com elas, um teste das relações que a nova obra mantém com as precedentes e de como esta modifica as relações entre a totalidade da ordem preexistente. O poeta consciente da presença do passado no presente e que busca conquistar a tradição é um leitor crítico das principais correntes e dos traços essenciais das obras mais relevantes. O poeta deve poder se apropriar do passado com uma certa capacidade crítica de seleção. Sua originalidade residirá na sua postura crítica e criativa, na maneira em que sua produção dialoga com as obras anteriores.
A partir disto, na segunda parte do texto Eliot salienta a necessidade de uma crítica dirigida a poesia e não mais à vida do poeta, em termos de dados biográficos. O autor propõe uma teoria impessoal da poesia, a qual consiste numa separação entre “o homem que sofre” e “a mente que cria”: as emoções e sentimentos do poeta são a matéria prima para a fase criativa de produção. Porém, a obra de arte resultante não pode ser lida como um reflexo da vida do autor, pois ela funciona de acordo com uma outra lei. A emoção que lemos é uma emoção transfigurada, própria do poema, construída a partir da forma do material linguístico: “O objetivo do poeta não é descobrir novas emoções, mas utilizar as corriqueiras e, trabalhando-as no elevado nível poético, exprimir sentimentos que não se encontram em absoluto nas emoções como tais. ” (ELIOT, 1989:47)
No poema “Autopsicografía” de Fernando Pessoa é tematizada a desvinculação entre a emoção pessoal do poeta e a emoção que tem sua vida própria no poema. A “dor” que o poeta sente, ao ser transcrita, ao passar pela composição do poema e as formas da linguagem já não é a sua dor, mas um efeito do poema. “A dor lida” no poema não é a dor do poeta, ela emerge da construção formal do poema.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Em síntese, nesse texto Eliot busca tirar a obra do conjunto biográfico, do “eu” do autor e dirigir a atenção crítica para a forma do poema e os sentidos que nele se produzem, ao tempo que propõe voltar a obra para o conjunto de outros textos com os quais ela dialoga.
Referências
Cancioneiro, ortônimo; Fernando Pessoa. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S. A., 1986. pp. 99, 98
ELIOT, T.S. (1989). Ensaios/T.S. Eliot; tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora.